segunda-feira, 31 de maio de 2010

LUZ DE MAIO

A luz de Maio encheu os dias,
e quando o sol se deita em sesta tardia,
colhe texturas verdes,
nos calços derramados nas encostas.
A luz de Maio, neste Douro quase Junho,
filtra o verde-novo,
o multi-verde,
à flor da colcha penteada
em bardos disciplinados
e prestes a emprenhar vinhos.

Amo a luz de Maio nesta terra!
Nenhum outro mês consegue extrair do sol
a luz que sabe os verdes das vinhas,
os brilhos de veludo,
os azuis do céu,
os carmins das cerejas,
a paleta das flores,
os brilhos dos meus olhos...
e o rio das tintas misturadas,
onde lavo os pincéis...



Peso da Régua, 31 de Maio de 2010 às 18:10

sexta-feira, 21 de maio de 2010

CARTA DE AMOR


Quando me escolheste, nos primórdias de uma união eterna, eu era ainda jovem e intocada virgem, que rasgaste em requebros de viril paixão.
O teu beijo húmido percorreu-me de azul os meigos contornos, os abismos de perdição, os relevos generosos. Tinhas pressa de chegar ao êxtase da foz, ao tempero de sal, mas mesmo assim te deixaste perder nos meus sinuosos jogos de sedução, e eu, avara de ti, lacei-te, enlacei-te e deslacei-te a meu mel-prazer e a teu bel-prazer...
Às vezes, engrossado por raivas que te são sangue do teu sangue, inundas-me as orlas confiantes do teu toque, por norma meigo, e arrastas destruição e medos. Tantas vezes!... De todas eu te perdoo, fiel, e tu, arrependido, voltas ao (meu) teu leito, fertilizando de carícias redobradas as minhas margens emersas.
De tanto amor é feita a nossa história! Amor e perdão, paixão e languidez, suor e folia, vinhos e frutos, verdes e ocres, ouro e ruby!...
Cantam esse amor as gentes simples que nos veneram os laços: súbditos fiéis que te seguem o cortejo de real imponência e te aclamam azul, por reflexão do céu que te coroa; serventes dedicados, que me modelam as vestes, me cuidam a beleza e me nomeiam d'ouro...
Abençoados por Deus, somos supremo e fértil enlace, e as nossas bodas renovam-se sempre, a cada ano, em faustos festejos e brindes de vinho fino...

(DOURO - diálogos da Terra e do Rio)
TROVAS DA TERRA

Lavei um dia no Douro
Os lençóis de linho e rendas
Onde dorme o meu amor
Entre beijos e oferendas.

Mas o rio fez-se ciúme
Ao perceber o feitiço
Que restava em vestígios
De tão doce compromisso...

Mirou-me e molhou o olhar
Com lágrimas de pura dor,
Beijou-me as mãos e rogou-me
Para ser só seu amor.

Eu ri de tal pretensão,
Afaguei-lhe a inquietude,
Mas fui secar meu lençol
Pra longe do seu açude.

Ele, rio d' amores e mágoas,
Fez-se em ouro, sol e céu
E em oblação singular,
Converteu-se em colar meu!



(Romance triangular - Homem, Terra, Rio...)
ROGA DE VINDIMA

"Fui ao Douro às vindimas,
Não achei que vindimar,
Vindimaram-me as costelas
Olha o que lá fui buscar."

(Cancioneiro popular duriense)


Fui ao Douro à vindima,
Não achei que vindimar,
Vindimaram os meus olhos,
Colheram-mos para o lagar.

Não achei que vindimar,
Nem sequer um só baguinho,
Mas meus olhos d'uva preta
Apanharam-mos p'r'um cestinho.

Nem sequer um só baguinho
P'ra fazer um néctar doce,
Mas meus lábios de cereja
Quiseram-mos p'ra sua posse.

P'ra fazer um néctar doce
Com aroma a mosto fino,
No cálice dos meus abraços
Escreveram meu destino.

Com aroma a mosto fino
E cheirinho de hortelã,
Aromatizaram meus beijos
Certos olhos de avelã.

E cheirinho de hortelã,
Matizada de sol posto,
Beberam-me em copo d'ouro,
Em licor de fino gosto.

Matizada de sol posto,
Orvalhada de tons quentes,
Fui ao Douro à vindima,
Colhi só olhares ardentes...
BAGOS E BEIJOS

Soltam-se cachos de raparigas
pelas vinhas prenhes de Setembro,
embalam de risos e cantigas
cachos de socalcos em requebro

sobre o rio doce onde se miram
ensaiando matizes d'ouro antigo.
Soltam-se em cores e às cepas tiram
doce manancial, farto respigo.

Ajeitando o rubor das faces sãs,
reflectem seus cantares na limpidez
do Douro, companheiro de afãs,

que lhes cobiça, ciumento, os beijos
destinados aos bagos de languidez
que os moços lhes atiram, em desejos...

SOL, SUOR E MOSTO

Sol, suor e mosto
em dias de Agosto,
quando a uva feita
se apronta à colheita
em sede de vinho
tocado de gosto
mel e rosmaninho

Migas de sol posto,
com sabor de mosto
a brincar-me os lábios
de beijos e adágios,
rubros, sãos folguedos
tingindo-me o rosto
em tons de vinhedos

D'ouro e fino gosto,
barco em rio posto,
rabelo fecundo
descobrindo o mundo,
colinas vestidas
de chita onde encosto
sestas de Agosto

E tudo que aposto,
Douro que te gosto,
é a safra melhor
do meu peito amor
que guardo em fascínio,
cálice deposto
em sacro domínio

NOIVADO E CONSUMAÇÃO


Lá para fins de Agosto, ela estava pronta.

Linda, perfumada de fruta fresca, dourada de aromas quentes, seios de uva grada, dava-se aos olhos em promessas de vindima e gula...

Ele, perdido de amores por ela, de sempre devotado a ela, enlevava-se com a beleza da sua maturidade plena. Vira-a crescer, despontar os primeiros risos tenros, ousar os primeiro vestidos de moçoila, que ele ajudara, quase paternalmente, a ajeitar com laços e carícias, para permitir que o sol de verão lhe moldasse a doçura e a corasse de vida...

Havia-a cuidado, velado, protegido de males e perigos, com amor e dedicação, porque a sabia dele, para ele. Agora ela estava pronta... Virgem madura que se descobre desejada e se enfeita a primor para o seu homem...

...

Naquele dia, ela amanheceu húmida, tocada de uma frescura nova, a anunciar adeuses de Verão: era o Momento...

Já neblinas lhe rondavam os desejos de dar-se, como véus de noiva pronta. Desceu ao rio, mirou-se nas águas mansas que lhe murmuraram olhares cúmplices, penteou as tranças alinhadas, enfeitou-se dos melhores ouros, perfumou-se de mosto e deitou-se na colina, à sua espera...

Ele veio certo, com um assobio alegre entre os beijos prometidos, de mansinho, gozando em deleite os últimos olhares de sedução e os primeiro toques de posse...

Tomou-lhe com requintes a farta colheita, em luxúria de suores, vinho, sol e risos cantados...

Só o rio e o céu foram testemunhas desse acto de entrega e paixão. O sol, seduzido por uma jovem nuvem a prometer as primeiras chuvas, retirou-se, em rituais de namorico... e a própria brisa correu a esconder-se, mais por respeito que por pudor...

...Em metáfora de sementes, restaram, sobre a terra revolta, esparsos bagos de mel...
MANHÃS ANTIGAS

Relembro manhãs antigas em que o sol entrava, sem entraves de cortinas, no silêncio do meu quarto...
Havia tanta música no silêncio desse tempo, tanta paz, tanta harmonia!...

Era o cuco, ao longe, a anunciar que "a fim do mundo" não viria entre Março e Abril...
Os chilreios pendurados nas árvores vizinhas, a ensaiar sinfonias de Verão...
O ronronar dos atomizadores, ao longe, na árdua profilaxia dos míldios...
O zunir pachorrento de uma mosca, em acrobáticos voos de rotina...
Um chamamento, ao longe, da janela para a vinha em frente, musicado pelas ondas da distância quieta, cristalina...
O suspirar doce das rosas, em perfumada agonia, na jarra sobre a cómoda...
E o barulho mudo das partículas pacíficas, mansas, da poeira caseira, a bailar evidências fugazes, suspensas na ribalta de um feixe de sol...

Relembro o silêncio antigo do meu quarto e lembro, de fresco, de agora: a paz não é feita de silêncio puro... mas do silêncio inocente dos sons que já não há...





terça-feira, 18 de maio de 2010

CORRE-ME UM RIO NAS VEIAS


Corre-me um rio nas veias
Que me traz em encantamento
Fluindo entre as ameias
Das colinas que acalento.

E no coração, o Douro,
Sentido a suor e sangue,
Na esperança do tesouro
Da vindima que se segue...

Trago uma terra ao peito
Que me honra o nascimento
Sempre que os olhos lhe deito
No pulsar do sentimento!

E aos pés, em submissão,
Verde e azul rivalizam,
Num rio em reflexão
Das terras que o enraízam...

OUROS DO DOURO

A corrente que me traz presa contigo,
rio livre de insinuante abraçar,
é de ouro que te faz rimar comigo,
terra viva que te sorve o espelhar.

O fio d'ouro com que me adornas o colo,
rio Douro de precioso azular,
é enfeite que combina a cor do solo
com o brilho do teu húmido beijar...

...e é ver-nos, quando Agosto chega ao rubro,
passeando, lado a lado, em procissão,
eu, vaidosa, com arrecadas de ouros

enfeitando os declives de veludo,
e tu, meigo, enleando em cordão
as curvas dos meus seios já maduros...


(DOURO AO DOURO -diálogos entre terra e rio)
RESGATE D'OURO


Atirei os olhos ao rio
Como quem ao mar se lança
Num barco de esquecimento,
Tentando afogar a frio
O calor do pensamento...

As águas fundas salvaram-nos,
Em pétalas de ondas mansas
Que a brisa elevou em sopro
E de volta os entregaram
À praia ignota, meu corpo.

Vinham repletos de azul,
Que do céu nunca se cansa,
Os meus olhos resgatados!,
E do ouro do seu pecúlio
O rio os trouxe enfeitados!

E das vinhas, em altar-mor
De talha d'áurea fartança,
Recolheu uma oração
E espelhou-a em amor
Nos meus olhos e coração...

Fez-se de veludo o brilho
De todos os tons da esperança,
O fulgor dos olhos meus!...
E como quem segue um trilho,
Ergui-os, em graça, aos Céus!

E como quem nina um filho
E nos braços o balança,
Na alma tomei o Douro,
E em precioso caixilho
O guardei, como tesouro!...



segunda-feira, 10 de maio de 2010

"Dez-a-fio"

(BREJEIRICES)

"Assim se amassa, assim se peneira, assim se dá volta ao pão da masseira..."


J'amassaste o pão há horas,
Está pronto a meter ó forno,
Bê lá tu se não demoras,
Que estou a ficar com sono!

J'amassei o pão há horas,
Mas ainda num está lêbedo,
Chegas a casa a desoras,
E inda por cima bens bêbado!?...

Ó mulher, num benho nada!,
Com esta já lá bão três,
Faz lá tu a quarta quadra,
Qu'inda consigo ir às dez!...

Ó homem, num faço nada,
Qu'o pão cresce na gamela,
Ajuda-me aqui co'a fornada,
Que tenho mãos de donzela...

Pra isso tens que tender
A broa bem 'farinhada,
Depois t'ajudo a meter
A pá bem endireitada.

Pra isso tens qu'aquecer
O forno no ponto certo,
Põe mas é lá isso a arder,
Gosto do forno desperto!

Ai, mulher, num aguento,
Já lá bai longa a faina,
Já trabalhei tanto tempo,
E tu queres inda mais lanha!?...

Ai, homem, num t'aguento!
Queres ou não qu' a côdea estale?
O pão cozido no ponto,
Dize lá, quanto num bale?...

Tás-me a ficar entendida,
Sim, senhor, lucro teria,
Se te montasse, querida,
Uma bela padaria!...

Tás-me a ficar atrebido!...
Olha!, já queimaste a pá!
E agora?... o pão tendido...
E metê-lo...já não dá!!!


(Num te queixes, ó mulher,
A seguir ó dez bem onze,
Bou já outra pá fazer
E começamos no doze!...)

"Dois-a-fio"

"No tempo do cerejo, vem meu beijo!..."


"Do cerejo ao castanho, bem me amanho, do castanho ao cerejo, mal me eu vejo!", já se dizia na minha terra...


Não olhes pra mim assim,
Que o meu rosto se acereja,
E pra que falem de mim,
Basta que pouco se veja!

Se o calor do meu olhar
Te amadurece o afecto,
Que mal há em mordiscar
O meu fruto predilecto!?...

Pardais, por aí há tantos,
Tem cuidado, vê lá bem,
Se por minha arte' encantos
Te tornas pardal também!

A ser, que fosse matreiro
E te pousasse no colo,
Do teu corpo cerejeiro
Roubasse fruta e consolo...

Ai rapaz, tu tem-me tento!
Não percebes meu aviso?
Há caçadores sempre atentos
A pardais sem bom juízo!

Por ti, cerdeira madura,
Arrisco até minhas penas,
Pois são de paixão segura
As cerejas que me acenas!...