domingo, 23 de janeiro de 2011


(a vista da minha colina - foto da autora)

AUTO-(GEO)BIOGRAFIA


Sou duma colina de nascer serôdio, quase no limite da legitimidade - filha assumida de um amor nunca negado entre o maduro Douro e a sua Beira... Colina altiva, a colina onde nasci, impôs sempre a sua orientação para o rio que a baptizou, mas só em bicos de pés o conseguia ver passar, envalado ciosamente pelas suas irmãs mais próximas. Mas sabia-o lá ao fundo, embalado docemente em berço de veludo e afectos.

A colina onde nasci era feliz. E forte. Sempre olhou o Marão de frente, sem medo ao norte, guardada pela luz terna que lhe nascia sobre os umbrais distintos; iluminada pelos grandiosos entardeceres que se fundiam em ouro e sangue, além, muito além, ao largo das vagas meigas das Meadas.
Lamego sempre a acompanhou, a oeste dum relancear. Separou-as só o Varosa, enterrado a fundo, no relevo e no coração. Em menina, o Varosa tinha para a minha colina a mesma visibilidade que o Douro: quase só sensitiva; mas, o progresso ditou destinos energéticos às suas águas humildes e a albufeira formada, em fases enchentes, molha-lhe agora os pés, e o pedaço de espelho líquido regala-lhe os olhos, em reminiscências de céu.

Mas apesar da colina onde nasci ser sempre minha, eu não pude ser sempre da colina onde nasci. Cresci, e a minha primeira intenção foi de voar, com as asas novinhas que um vento içante me ofereceu. Voei para longe, conheci parte do mundo e julguei vê-lo todo. Vi pessoas diferentes e pensei conhecê-las todas. Julguei-me acima do azul e então desci, para conhecer outras cores.
Fui parar ao abrigo da minha velha colina. Mas a pressa de viver empurrou-me encosta abaixo e resvalei, magoando-me, para um vale de lágrimas. Caí e ergui-me muitas vezes, para descobrir que o mundo é mais que cores, que ilusões, que vontades, que escolhas feitas em entardecedes de ouro. Mais até que amor: é renúncia, sobrevivência, luta, sofrimento, Dor.

E, seguindo o meu curso, encontrei o curso do meu Douro. A minha colina ficou para trás, mas a Régua que me mediu os anos, deu-me a margem mais favorável, virada a sul, donde lhe podia ver o topo protector...
... que me não pode poupar às lagrimas mais que chorei e juntei ao rio que nos separava, em inquieta fluidez.

Tanta água corre debaixo de uma ponte, que a acabará por minar. E os invernos rigorosos arrastaram-me para jusante, deixando para trás a minha colina, a minha colcha de vinhas, o meu bragal amealhado.

Desci com o Douro, na promessa duma foz libertadora. Agora, no limiar do mar que em ânsias me cobiça o partir, detenho-me, na fruição dos últimos entardeceres.
Não tenho pressa. Espraio o meu delta numa paz merecida, até que o mar me traga o barco que me levará. Para montante, Douro acima, de regresso à colina que me viu nascer...

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